Marjorie
Escrito por Luciana Fernandes
Em um dia não tão belo, eu e Marjorie
ficamos perto da miséria. Não o suficiente para chegar lá, mas a passos bem
perigosos de não ter uma casa ou o que comer.
— Vamos morar nessa casa vazia? — ela
me perguntou quando entramos em um terreno no bairro Cidade Nova de Manaus.
— Bom, tivemos que vender uma boa
parte das nossas coisas — eu defendi a ideia de morarmos ali — Não é tão
confortável como o nosso antigo apartamento na Ponta Negra, mas…
— É que eu fico com receio de ter que
andar nessa casa — disse Marjorie — Me dá calafrios ela.
Eu me lembrei do meu pai. Meu pai
sempre me dizia, quando mais novo, que eu deveria muitas vezes fazer as
vontades da minha esposa. Pensei bem nessa questão, tentando ir na lógica da
coisa, ainda mais sendo um professor de matemática para adolescentes. Marjorie
já estava fazendo muitas das minhas vontades desde que nós nos casamos. E olha
que éramos jovens.
— Você pode se apoiar em mim, minha
querida — tentei ser o mais romântico possível quando estendi minha mão para
ela — Assim, não terá o que temer.
Marjorie me encarou com seus olhos
castanhos pequenos. E, então, gargalhou.
— Isso não faz muito o seu estilo,
bobo! — sua mão delicada tocou a minha, apesar de sua fala.
Desse jeitinho, nós fomos até o nosso
quarto. Eu fiz o possível para que fosse agradável para nós dois. Tinha uma
lâmpada apenas no teto, um móvel para poder pôr um relógio-despertador e
algumas anotações para a aula da segunda, o dia seguinte. Possuía um
aromatizante, um de lavanda que ela adorava, e também alguns porta-retratos
nossos no chão. E no meio de tudo isso, nossas malas com nossas roupas e coisas
e também um colchão solitário.
— O que achou? — perguntei dela.
Ela deu um de seus sorrisos adoráveis
e comentou comigo:
— É, dá pra viver…
Demorou seis horas para que a noite
viesse na cidade de Manaus.
— Querido, você não vai dormir? —
perguntou Marjorie enquanto eu estava com meu celular ligado, falando com
alguns colegas professores e corrigindo algumas provas.
— Daqui uma hora… — eu disse para
ela.
— Você vai ficar com os olhos fundos
desse jeito… — Marjorie insistiu, preocupada — Não será nada legal para sua
imagem.
Eu a olhei. Marjorie era uma mulher
pequena, mas de força sem igual. Ela queria que eu desse certo na minha
carreira, que eu fizesse sucesso. Não para Marjorie se mostrar: ela já era uma
ex-socialite, que abandonou a antiga vida para viver de um novo sonho, ser dona
de casa. Marjorie queria ser mãe, Marjorie queria um bom esposo e Marjorie
queria ter a própria vida. Foram mudanças que ela teve após muitas reflexões
durante o tempo do nosso namoro. Marjorie queria mesmo provar para seus pais,
gente bastante rica, que seu marido era um bom homem.
Refletindo em Marjorie e em seus
olhos que eu tive o impulso de a beijar. E eu o fiz.
— Vá dormir, mulher, que ainda está
cedo.
Marjorie me lançou um sorriso fraco e
se acomodou no colchão. Voltou o rosto para o outro lado e fechou os olhos.
Eu passei a trabalhar nas provas.
Haviam raciocínios brilhantes, medianos, criativos e os que poderiam melhorar.
Eu gostava bastante dos meus estudantes e por isso eu fazia de tudo para não
ser o Mister Simpatia. Existiam estudantes que me odiavam por eu pegar pesado.
Mas era um modo que eu demonstrava que eu me preocupava.
Tive que fazer uma pausa para ir ao
banheiro. O banheiro ficava no segundo andar. Vestido de um par de meias e meu
pijama, eu fui até lá com os passos com o cuidado de uma pena. Embora eu
tivesse cuidado, o chão de madeira fazia seus gemidos a cada passada. Eu me
perguntei mentalmente se eu havia engordado e quantos quilos.
Na volta, notei que Marjorie estava
sentada no colchão. Ela estava se abraçando.
— O que houve, Marjorie? — eu
perguntei, ajeitando os meus óculos.
— Essa casa faz muito ruído —
respondeu ela — Parece que há peças na minha cabeça.
— Deve ser pela casa querer que você
feche os olhos — eu brinquei, embora não sorrisse.
Ela riu.
— Deve ser — voltou a ficar deitada,
mas não fechou ainda os olhos — Vou tentar dormir de novo. Dessa vez, vê se não
me assusta de novo!
Ficamos na casa por meses e meses,
até se tornar um ano. No primeiro ano, Marjorie me confessou que sentia
estranheza consigo mesma. Eu perguntei o motivo e ela me revelou “Algumas
vezes, sinto que minha cabeça não está bem”. Passei a me preocupar. A família
de Marjorie possuía um histórico de psiquiatras e internos de hospital
psiquiátrico. Eu já presenciei o segundo caso e não me fez nenhuma impressão
agradável a ideia de que Marjorie viesse a ser “mais um deles”. Eu estava
juntando minhas economias de aulas extras para vestibulares. O objetivo inicial
era comprar um carro, como nós dois costumávamos usar ônibus ou uber para
nossos afazeres. Eu passei a usar esse dinheiro para pagar consultas com um dos
melhores psiquiatras de Manaus.
Mesmo assim, não foi possível evitar
que pequenos acidentes vasculares cerebrais acontecessem em Marjorie. Foi tarde
demais, já que ela passou a perder memórias, mudar a personalidade para a de
uma criança e não fazer coisas que pessoas normais tem a habilidade de fazer.
— Oi, Marjorie, minha querida! — eu
disse em uma época que a cama era mais confortável.
Ela estava penteando os longos cabelos
loiros tingidos quando me perguntou:
— Quem é você?
— Quem sou eu? — eu falei — Eu sou
seu marido!
— Marido… — e ela fez força com os
olhos, como lembrasse com muita dificuldade de algo — Ah, marido — os olhos
dela tinham um brilho do passado, mesmo que por um instante.
Mas ela não sabia mais qual era meu
nome. Só sabia que possuía um marido. Era só.
— Eu peço demissão — foi o que eu
decidi depois desse episódio, indo para cada escola que eu lecionava.
Uma de minhas colegas disse:
— Por quê você não vai mais ensinar,
Rafael? — quis saber a outra professora.
— Marjorie não lembra mais meu nome —
respondi, uma das mãos em punho — E tenho que prestar mais atenção nela.
Não era culpa minha, eu sabia na
superfície. Mas no fundo do fundo, eu me culpei por não ter precavido antes a
situação. Eu havia feito de tudo e, no final, nada parecia ter adiantado.
Ver ela em estado infantil novamente,
tão frágil, estava me matando. Marjorie passou a enxergar coisas que não
existiam. Eu não tive outra escolha, pois sozinho ou com a ajuda de meu único
familiar vivo não adiantava. Resolvi chamar a família de Marjorie.
E eles vieram.
— Minha filha — disse o empresário,
pai dela — não lembra mais das pessoas?
— Ela apenas lembra de algumas —
respondi — Isso porque eu tenho a lembrar sempre quando posso.
— Posso providenciar uma cuidadora
para ela — o pai dela disse — Eu não tenho tempo. Tampouco a mãe dela tem
condições para cuidar dela.
— Ela não pode, sei lá, ajudar? — eu
queria saber — Ela é mãe, afinal.
— A mãe de Marjorie não pode andar
desde que teve um acidente em São Paulo
— revelou o homem, sério.
— Oh — eu fiz.
— Mas posso assegurar videochamadas
entre vocês três — prosseguiu o pai de Marjorie — Você, Marjorie e ela. É certo
que a mãe de Marjorie irá gostar de falar com a filha mais vezes.
Alguns primos de Marjorie instalaram
casas no nosso bairro, Cidade Nova, para poderem vigiar também a prima mais de
perto. Eu os conhecia pela infância. Eles não gostavam de mim, mas a amavam,
como sempre. Eu não me preocupava se me odiassem, eu só queria ajuda, eu só
queria que ela vivesse bem e por mais anos.
— Marjorie, querida… — em uma das
videochamadas, a mãe de Marjorie estava com lágrimas nos olhos.
— Quem é? — quis saber Marjorie,
quase desinteressada.
— Sua mãe — respondi com paciência.
— Ah, mamãe! — disse ela, de repente
alegre como uma criança.
— Ela está muito bem — a mãe de
Marjorie elogiou, pois sempre gostou de mim como amigo de sua única filha —
Esses vestidos dela… Não sei onde você os arranja. Combinam muito com minha
filhota fofa.
— Eu os arranjei com uma costureira
do bairro — eu disse para a mulher, observando pelo canto de meus olhos azuis a
cuidadora conversar baixinho com Marjorie — Achei por bem ela vestir vestidos.
Ela amava vestidos.
A mãe de Marjorie fechou os olhos,
inspirou o ar e afirmou com segurança:
— Sim — confidenciou — Ela gostava
muito de vestidos, eu via.
— O que aconteceu? — eu inquiri da
cuidadora, pois Marjorie estava investindo muito em conversar com ela.
— Marjorie disse — a cuidadora, quem
se chamava Sandra, contou — que tem uma vozinha na cabeça dela que disse que
ela tem que segurar a língua.
— Bom — eu acariciei o rosto da minha
mulher — diga para essa voz que eu sinto falta de nossas conversas.
Marjorie, com certeza
instintivamente, sorriu. Estava acostumada naquele dia com a minha presença.
Chegou o Natal do segundo ano. O
segundo ano naquela casa, a casa de madeira. Ficamos de ir para a casa do pai
de Marjorie, onde se reuniria a sua família. Havia quem gostasse dela, havia
quem disfarçasse que gostava dela apenas para ter a simpatia do pai e havia
quem não gostasse abertamente da mulher-criança. Da casa, foram soltados fogos
de artifício. Marjorie ficou encantada com eles e passou a lacrimar sozinha.
— Marjorie? — eu a questionei.
— Rafael — ela não me respondeu, mas
falou.
— Rafael é meu nome — eu apontei para
meu peito, esperançoso.
— Rafael — ela voltou a falar, algumas lágrimas caindo
de seus olhos — Eu não lembro quem é esse Rafael…
Minha teoria era que ela se lembrou,
mesmo que por um breve instante, de nossa infância. Nas festas juninas,
costumávamos contar sobre nossas paqueras na Ponta Negra, lá na casa do seu
pai, e ver os fogos de artifícios juntos. Para completar esses dias, também
fazíamos barquinhos de papel em poças de água e passávamos a observar os barcos
afundarem. Marjorie costumava brincar que os barquinhos de papel ofício eram
como se fossem a vida. Um tempo, de pé, vivos. Outro tempo, caídos, sem vida.
Uma lágrima saiu de um dos meus olhos
ao pensar na possibilidade de Marjorie morta.
— Isso dói — eu sussurrei para mim
mesmo.
Demoraram três duros anos para que
Marjorie fosse embora. Em seu funeral, vi o seu rosto no caixão. Ela estava com
um sorriso desalinhado e feliz. Em seu descanso eterno, creia eu. Nesse dia,
chorei demais de saudade. Acho que chorei talvez mais do que seus pais ou do que
seus primos, como ela havia morrido em casa. Em meus braços. Era um sacrifício
viver depois disso.
Com a morte de Marjorie, não havia o
que me segurasse para não trabalhar. Recomecei o meu trabalho como professor de
Matemática em escolas públicas. Não namorei. Não me casei de novo. Muitas
vezes, não trabalhei muito bem, já que às vezes eu tinha a sensação de ter um
abraço de Marjorie ou de ouvir um grito seu como se ela estivesse me observando
em estágio de criança.
“Marjorie… Marjorie… Você não foi
embora por eu ainda querer o seu amor?”, uma vez me peguei pensando depois de
conversar com uma psicóloga simpática, “Me deixe embora logo, por favor”. E
lágrimas invisíveis escorreram de mim aos 57 anos. “Eu não demorarei a ir
embora”.
Em uma noite de Natal, como aquele
tempo da vaga lembrança dela dos fogos de artifício e do meu nome, eu estava
deitado na mesma casa de madeira da Cidade Nova. Eu possuía 58 anos. Desta vez,
a velha casa estava reformada, mas tinha o mesmo ar assombrador de antes. A
igreja mais próxima tinha cânticos belíssimos e não possuía instrumentos
tocando. Era apenas a voz me guiando pela noite adentro.
Eu vi de relance alguém sair da
porta. Era Marjorie, com o mesmo vestido azul que vestiu quando foi enterrada.
Desta vez, ela parecia estar bem consciente. Um sorriso travesso brotou de seus
lábios. Eu abri a minha boca para falar, mas ela fez menção para eu ficar em
silêncio. E ela desapareceu.
Eu não senti mais vontade naquele
momento. A minha vontade era fraca. Meu corpo estava fraco. Minha alma estava
fraca. “Espere, Marjorie”, eu pensei antes de dar meu último suspiro, “Vejo
você já já”.
E eu fui encontrado morto por um
vizinho, quem estranhou que eu não saí de casa por três dias. Não havia
parentes que pudessem chorar por mim, apenas meus ex-colegas de trabalho e meus
estudantes. Eu era um barquinho de papel caído, assim como foi Marjorie.
FIM.
Marjorie
Sessão Rajax | Filme 1
Criado e Escrito por:
Luciana
Fernandes
Elenco:
Marjorie – Juliana Paiva
Rafael – Rodrigo Simas
Mãe de Marjorie
Pai de Marjorie
Rajax © 2021
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