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ENCONTRE

Escrito por Luciana Fernandes

 

Em janeiro de 2020, eu, Íris, comprei máscaras descartáveis em uma drogaria. Isso foi antes da notícia do dia 29, quando o Brasil sabia da confirmação de caso do vírus maldito. Eu comprei por achar que precisaria por um tempo, depois que fui informada de casos do vírus em outras partes do mundo. É bom se prevenir nesses casos, né?

Eu já era reclusa no meu apartamento, localizado no bairro manauara Chapada. Eu muito pouco saía de casa, mesmo para fazer compras para necessidades. Eu já era adepta de comprar coisas por delivery, inclusive coisas de supermercados. Minha rotina em janeiro de 2020 basicamente era escrever mais poesias do que as que eu tinha escrito, compilar poesias em livros e enviar ou guardar essas obras para prêmios e editoras nacionais de médio porte.

Sei, sei o que você pode estar pensando. Que poetas podem muito bem sair de casa, que o mundo não parecia estar em seu fim no mês de janeiro e que eu estava exagerando. O negócio é que meu pai faleceu em 2019 e, desde então, passei a morar sozinha. Além de escrever, claro, arrumava as coisas da minha residência e limpava cada centímetro quatro vezes por semana. Embora estivesse desempregada, o dinheiro que meu pai, um homem conhecido pelas suas riquezas, ajudava nos custos do aluguel e das despesas. Eu não tinha mais ninguém mesmo para contar totalmente, com exceção de uma pessoa.

–  Thalita – disse eu, no dia em que foi confirmado o vírus no Brasil – Você acha que eu tenho alguma chance com o prêmio Jabuti?

– Você é boa – Thalita, romancista e minha amiga de Ensino Médio, comentou – Mas sei não, esses prêmios mais de peso me parecem... sei lá... Mas tenta, vai que você consegue.

Desde o Ensino Médio em uma escola pública, Thalita era receosa quanto ao mercado do livro. Talvez isso seja por ter ela tido originais seus recusados por uma grande editora, a editora Fantasia, e ela ter decidido investir por enquanto em editoras pequenas. Na minha opinião, as histórias dela prendem. Pelo menos, a mim, uma mulher solteira de 22 anos.

Mas eu não captava o que ela entendia do mercado como a realidade para o meu caso.

– Se eu sou boa no que faço – eu falei com ela por chamada no WhatsApp enquanto rabiscava um poema de amor no papel – Por que eu não conseguiria?

– Íris, miga – contou ela enquanto eu escutava sons de uma menina chorando por atenção em seu lado da conexão – Tem muita gente que também se esforça nesses concursos e prêmios de poesia. É competir com gente que pega muito pesado também. Não se sabe o resultado, vai por mim. Não já ache que venceu a parada.

– Competir tipo com quem? – eu a questionei, querendo saber da minha concorrência.

– Paulo César, por exemplo – Thalita me respondeu– Aquele cara que você conheceu na faculdade...

– Ah, meu ex – sem pensar duas vezes, falei e mordi uma unha.

Eu tinha alguns ex-namorados na época da faculdade. No Ensino Médio, as pessoas me tratavam como uma “nerd com cara de galerosa” e isso fez com que amizades se distanciassem de mim por me achar difícil de acompanhar. Menos a minha amiga leal, Thalita. Na faculdade de Letras que comecei com 17 anos, conheci várias pessoas que tinham o mesmo sonho que eu: transcender como poetas e escritores.

Paulo César foi uma pessoa que conheci nessa época. Era poeta também e no começo achava dificuldade de se encontrar na poesia. Mas, com o meu empurrãozinho e de suas leituras de poetas como Fernando Pessoa, ele voou. Quando ele voou, meu amigo, eu parecia um pisca alerta de tanta paixão, pois pensei “Pô, achei a minha alma gêmea!”. Passamos a namorar, mas um dia eu percebi que ele passou a me achar... não muito significante.

Não sabia se tinham sido as fofocas. Para alguns rapazes petulantes da minha turma de 2016, eu não era para casar. Nunca entendi a mente desses homens. Talvez fosse a minha admiração por uma garota da nossa turma, Jéssica, que era uma poetisa prodígio. Muita gente entendeu na época entendeu como sendo “lesbicagem”. Outros estranhavam eu querer distância de panelinhas de garotas populares do curso. Mas eles mal sabiam que elas não eram bem flores que se cheirem.

Bem, deu para entender o que aconteceu. Eu e Paulo César terminamos logo depois dos burburinhos.

– Achei que você não ia querer que eu mencionasse essa parte da história – na conversa por telefone, Thalita disse brincando – Ele não foi legal, dando um chute na sua bunda praticamente.

Suspirei e tirei a unha da minha boca. Realmente, ele não tinha sido legal no fim comigo. Mas eu reconhecia que o começo de nosso relacionamento foi interessante e agradável. 

– Eu já esqueci disso, Thalita – avisei sincera, pois nada na minha vida até então tinha me abalado tanto quanto a morte de meu pai – Fora que, se ele não estava feliz comigo, o que eu podia fazer? – dei-me de ombros.

Passou-se um minuto de silêncio. Achei que Thalita sentiu que não era mais um assunto a se tocar. Eu não me importava mais com o tema. Se ela prosseguisse ou não, não tinha diferença para mim.

– Mudando de assunto – depois que sua filha sossegou, Thalita ficou bastante séria – Você soube que o novo coronavírus está passando a atingir aqui no Brasil?

Fiz um “huuuum” com a boca.

– Não deve demorar pra vir pra Manaus – respondi, não gostando de dar a dedução, já que eu me preocupava com o povo amazonense – Tem gente que viaja muito daqui pro Sudeste e vice-versa. É janeiro, né? Tá chegando o Carnaval.

Sobre a praga chegar para Manaus, foi dito e feito. Alguns dizem que o vírus veio da China, outros dizem que o vírus já existia em outros lugares. Mas uma coisa é certa: ninguém esperava o que aconteceu. Ninguém, nem o ministro da Saúde da época poderia prever. Se soubéssemos mais como precaver todos...

Eu não previ o que viria a acontecer com Thalita. Isso foi outra tragédia para mim.

Thalita, ao contrário de mim, formou uma família, uma vulnerável. Ela vivia em uma espécie de ocupação, próxima de um igarapé no bairro onde costumava ser nossa escola. Os minutos para me telefonar eram regrados. Ainda bem que Thalita tinha um marido super carinhoso e que não a agredia, embora, anos depois, eu soubesse que ele a traía com uma mulher mais nova estrangeira e isso tenha doído em mim.

Thalita fazia merendas para vender às famílias no entorno da ocupação, mesmo com o caos em março. “Sempre dou jeito de entregar”, um dia ela me contou via SMS. Não sei como foi que Thalita se contaminou, isso a família dela não me explicou direito. Mas o que eu sei que em uma manhã de domingo de fevereiro, Thalita voltou para casa achando que tinha gripado. Inclusive, a minha amiga me telefonou contando isso. “Eu não acho que seja corona”, apontou ela na ligação. Só que, em uma tarde de abril, a mulher estava desesperada em SMS dizendo “minha filha está com muita febre!”. Eu não tinha carro. No entanto, eu, nervosa, tinha como pedir um uber para Thalita. E esse foi o nosso último contato. Eu tentei ligar para Thalita depois do acontecimento, mas ela nunca atendia.

A filha de Thalita morreu esperando por um leito de UTI em hospital público. Os pais não puderam estar com ela na hora do enterro. O homem ficou muito depressivo e disse “O que fazemos agora?”. Thalita passou a se alimentar cada vez mal. Acho que isso influenciou no seu sistema imunológico, pois a “tosse seca” passou a vir com força. A moça ficou na enfermaria por cinco dias. No sexto dia, segundo parentes, parecia não ter forças para lutar depois da morte da filha. Fechou os olhos. Sorriu. Se foi.

Fiquei sabendo da morte de minha amiga através de mensagens de familiares em seu perfil do Facebook. “Mais uma vítima dessa doença”, sua mãe escreveu. “Minhas amadas se tornaram uma estrela no céu”, disse o esposo de Thalita e pai do filho dela. Resolvi não dizer nada nas minhas redes sociais, apenas chorei silenciosa no meu quarto. Perder minha única amizade naquele mundo da época era um tormento.

Em junho, eu não estava com humor para pensar em festas juninas, por mais que me agradasse comer um espetinho naqueles dias. Em junho, soube da corrida das vacinas e talvez a criação da vacina mais rápida da história (não me atentei bem para ver qual seria). Eu soube da corrida das vacinas através de algumas senhoras que eu ouvi no supermercado mais próximo do meu prédio. Embora eu seja de uma opinião “nem sim, nem não” para as vacinas, eu me perguntei na hora o que aconteceria se estivéssemos vacinados antes. Talvez Thalita e sua filha ainda estivessem entre nós.

Em julho, tentei buscar inspiração para poemas novos. Meus poemas estavam ficando repetitivos com a tristeza que me consumia. E eu não podia recorrer a uma publicação física, tinha que recorrer para o site Amazon. Eu também precisava vivificar meu espírito com algo. Então, decidi olhar pela fresta da janela da sala do meu apartamento. Através dela, pude ver conhecidos do prédio saindo cuidadosos para os trabalhos. A flexibilização no Amazonas deu seus passos. Alguns arriscavam em caminhar ao ar livre. Já tinha o anúncio de que escolas voltariam a ter atividades presenciais. Resolvi, com tudo isso, fazer poemas sobre a ironia da vida. Demoraram três meses para que eu tivesse em torno de 4 poesias que eu gostasse para divulgar. Minha capacidade industrial de fazer poesias se esgotara.

Achei que dezembro de 2020, o primeiro natal que eu passaria sozinha e não na casa de meus primos (uma coisa boa da pandemia), seria o mês em que estaria confidente e em todo vapor para mais poesias. Eu me enganei.

Durante o período em que eu estava 99% confinada no prédio, eu observei que o tempo pandêmico fez a gente mais atento ao que acontecia perto de nossa casa. Em agosto, vi uma cena enquanto fervia um yakissoba de delivery na minha cozinha. Dois jovens andavam de mãos dadas, juntos, quando uma mulher indignada gritou com um deles pela varanda de seu apartamento, que ficava ao lado do meu. Era para um deles subir “já”. Ela estava uma fera. Eu apenas observei, pensando que talvez, por serem dois homens, um deles fosse má influência. Dias depois, eu só veria o outro jovem, só e andando pelo prédio. Nosso prédio possuía piscina própria e academia. Isso fazia circular gente por meio dos espaços livres. Por isso, posso assegurar a vocês, a cena não me incomodou tanto. Eram coisas do cotidiano que eu achava que não deveria me meter.

Em dezembro de 2020, quando eu quis sair para poder fazer musculação na academia do prédio depois de dois anos, fiquei em estado de choque.

– O que você está fazendo aí, rapazinho? – foi a primeira pergunta que escapou dos meus lábios, pois eu vi um jovem com uma mala pronta, máscara e com marcas em seu rosto.

Era o mesmo jovem que estava com o outro homem. O mesmo jovem que foi mandado ir para cima.

– Esperando minha mãe mudar de ideia – o rapaz me disse com um machucado sangrento em seu nariz e algumas pequenas cicatrizes perto de seu queixo e de sua testa – Ela me deixou aqui fora.

Ele não olhou sequer para mim. Isso me deixou meio aliviada, pois pude trancar a porta e esconder a chave em um dos meus bolsos. Mas eu também fiquei agoniada por ele. O prédio funcionava a base de quatro elevadores e cada corredor de cada um dos dezoito andares tinha uma atmosfera sufocante. Eu me lembrei disso por instinto, como eu já tinha passado por um perrengue e ter que pedir ajuda de um chaveiro.

– E você pretende ficar aí até ela mudar de ideia? – eu queria saber.

– Sim, é o jeito – falou ele, quem devia ter mais que 17 anos e menos que a minha idade – Eu não tenho mais onde ficar mesmo, só naqueles abrigos para sem-teto...

– Qual o seu nome?

Ele olhou para mim. Tinha os olhos azuis como safira. Não parecia ser amazonense à primeira vista.

– Bryan – a curiosidade estava em seu olhar.

– Bryan, sou Íris – eu falei – Torço para que sua mãe consiga abrir a porta para você. Se precisar de algo para ajudar no seu ferimento, a vizinha da porta de lá – apontei para a porta no outro lado – é enfermeira, pode te ajudar.

– Moça, minha mãe está fora – disse ele, quem voltou a ter um olhar vago para o horizonte – Mas obrigado pela consideração.

Eu o olhei mais por um momento. Meu coração estava apertando um pouco, condoendo-se pelo rapaz. Pensei bastante na minha mãe, quando viva e respirando, que disse que sabia que eu ia ser uma pessoa maravilhosa. Entretanto, achei que não era da minha conta. Era um desconhecido! Meu pai tinha me ensinado a desconfiar de pessoas que aparecessem do nada. Fui para o elevador e esperei dar no subsolo. Meu coração ainda se achava apertado de compaixão. Fui para a guarita, peguei as coisas para ir à academia e fui malhar por meia hora, mesmo com a cena matutando na minha cabeça.

Uma notícia estava na televisão da academia. Era sobre o abandono de uma criança de 12 anos nas ruas do bairro manauara Jorge Teixeira. Moradores a acharam, cuidaram dela e o conselho tutelar foi acionado. Minha mente se vasculhava no automático a imagem do rapaz vizinho. Meu coração, um coração grande demais para mim (não literalmente, digo), parecia estar se sufocando. Finalmente, a fotografia da minha mãe, a que guardo com carinho na cabeceira da cama, foi visualizada pela minha cabeça.

Suspirei em derrota franca. “Como o universo conspira para que eu faça algumas coisas...”, pensei, quando eu pus os pesos de uma máquina de musculação de volta ao lugar e ao passar um álcool gel que eu tinha no bolso. Eu também fui para um canto, onde estavam posicionados pelo prédio um pano e um espirrador com álcool. Levei cinco minutos para limpar as máquinas, desligar a televisão, desligar o ar-condicionado e trancar a porta da academia.

– Aqui está o que vocês me deram da academia – eu disse para um dos guardas, um rapaz de tez negra, antes que ele assentisse a cabeça e agradecesse – Queria saber de uma coisa.

– O que, moça? – perguntou o guarda.

– Tem um rapaz no corredor do sexto andar – respondi – Ele parece ser filho de uma senhora que mora por lá. Conhecem ele?

O guarda viu o sistema de vídeo. Todo corredor do prédio tinha câmeras e ele conseguiu capturar o momento em que Bryan estava deitado no tapete de onde era seu apartamento. Os olhos do jovem estavam fechados.

– Ele é filho da senhorita Kathleen – contou o outro guarda, um que parecia ser um autêntico manauara pela sua aparência – Não é adequado falarmos sobre a vida íntima dos moradores – vendo que eu continuava o observando, ele parecia ter se sentido pressionado para continuar – ele teve uma briga feia com a mãe.

– Oh – eu fiz, também atenta para a imagem das câmeras de segurança.

Bryan parecia não abrir os olhos. “Será que ele tá bem?”, eu me preocupei. Decidi pegar rápido o elevador e fui ao meu andar. O garoto ainda estava lá, deitado sob o tapete do apartamento, mas parecia estar respirando. Quando me aproximei devagar para ver o seu rosto descoberto (a máscara estava em suas mãos), percebi o quão magro ele era e que seus lábios rosados se mostravam secos. Achei que ele estivesse dormindo, mas, como tivesse ouvido os passos do meu tênis, Bryan abriu pouco a pouco seus olhos azuis.

– Mãe? – perguntou ele, antes de ter seus olhos mais abertos e parecer contemplar o meu rosto – Ah, é você. Íris, né? – Bryan passou a se sentar onde estava – O que você quer que eu faça?

– Precisa fazer nada, menino – por eu estar em um peso razoável, fruto de rigorosa dieta, eu me abaixei e fiquei face a face com ele – Enquanto a sua mãe não vem, você pode ficar comigo em casa... – desconfiança passou nos olhos dele e eu não o culparia por isso, pois eu não o tratei tão amigável assim e ele podia não saber da minha mudança de coração – Posso te dar água.

– Minha mãe chega na semana que vem – riu Bryan, triste, e me deu um meio sorriso – Vai demorar muito tempo.

– Não tem importância – eu falei sem pensar duas vezes, só indo pelo meu coração – Se estiver com sede, melhor vir logo.

Não demorou para que Bryan me acompanhasse até a porta. Eu soube que ele me acompanhava, depois de eu virar pela porta, pelo barulho da mala. Era provável que ele estivesse na porta de onde era seu apartamento por horas. Sufocado, faminto e com sede.

– Não repara a bagunça – eu disse para ele assim que abri a porta do meu apartamento.

– Meu quarto é mais bagunçado que isso – Bryan me relatou tranquilo – Sua casa é bem arrumada.

Eu convidei para que ele se sentasse em uma mesinha que eu tinha na sala. Enquanto isso, eu peguei um copo com água na cozinha. Minha mente me fazia um interrogatório ao mesmo tempo em que eu estava longe dele. “Tá ficando maluca, Íris, e se o menino tiver má índole?”, veio um pensamento. Porém, prevaleceu um pensamento de que “Pelo menos, minha consciência está limpa”. E caminhei até ele.

– Espere aqui o quanto quiser – falei calma para Bryan – Até você conseguir ir de volta para sua casa ou conseguir outro lugar.

Ele pegou o copo de água e tomou um gole.

– Como eu vou saber se você não é uma má pessoa? – Bryan desembuchou, seus olhos me espionando.

Eu ri daquilo, pois, como eu disse:

– Bom, se você duvidasse mesmo disso, não teria tomado a água – e percebi ele um tanto surpreso com a resposta, já que ele abaixou o rosto para a água e fez uma careta.

– Isso tem veneno não, né? – quis saber Bryan.

– Claro que não – ri outra vez, com mais humor.

Eu queria fazer nada com o garoto além de ajudá-lo. O sol aparecia por meio da varanda da sala de estar e eu tive que ir até a varanda para fechar as cortinas e a porta. Quando voltei até a mesinha onde Bryan estava, ele estava encarando alguns quadros presos numa parede.

– Quem são esses? – ele apontou para o quadro de um bebê nos braços de uma mulher de tiara vermelha e de um homem de terno – Eu acho que já vi esse homem antes.

Com uma máscara de tecido no rosto, olhei para o tal quadro com um mix de saudade e alegria.

– São os meus pais – contei, sem desviar os olhos do quadro, e tive que fazer força para uma lágrima não descer – Mamãe morreu quando eu tinha 2 anos. O meu pai morreu ano passado.

– Ele é um cara chamado Adão Salvador, não é? Tá mais jovem na foto – ouvi Bryan me dizer– Ele era um empresário que ia pra umas festas. Algumas vezes eu o via nas colunas sociais daqui da cidade.

– Sim, ele ia para umas festas – eu declarei, já olhando para o rapaz – Ele era convidado a eventos importantes. Eu nunca ia para esses eventos, não sei o porquê. Mas conhecendo papai, devia ter um ótimo motivo.

– Isso significa que você é da alta sociedade? – os olhos de Bryan brilharam em curiosidade – Puxa vida, que massa!

– Não, só era filha dele e de mamãe – respondi séria, não gostando do tom de ser vista como da “alta sociedade”, pois era como se eu fosse distante – Tem uns jornalistas que tentaram entrar em contato comigo no tempo da morte dele, mas eu não gosto de muita atenção.

Minha resposta parecia ter surtido algum efeito nele, já que ele ficou em silêncio por alguns minutos.

– Então você é Íris Salvador – Bryan parecia estar querendo absorver as informações – Como é que você mora sozinha nesse apartamento? Se for do tamanho do meu, é grande. Você podia morar em outra cidade, não acha?

Minha paciência tinha um limite. Aquelas perguntas sobre meu status me lembravam situações na faculdade com as garotas de panelinhas de Letras. “Ah, Íris, podemos ir para o Tropical Hotel? Quero ver o pôr-do-sol”, uma delas teria me perguntado após se aproximar de mim por dois dias. Isso porque ela viu meu pai em um evento lá. Perguntas sobre meu status, vindas de repente, faziam eu me sentir muito tensa. Eram frequentes as pessoas que tentavam se aproximar de mim.

– Eu sei lá, Bryan! – tomei cuidado para não gritar alto com ele – Vamos falar agora da sua situação... A sua mãe só volta semana que vem? Que dia?

– Terça – Bryan me respondeu, meio silencioso – Por que a pergunta? – dado eu não responder, o jovenzinho ficou inquieto e pareceu surtar – Você vai denunciar ela?!

– Eu não tenho essa vontade, pode relaxar. Acho que se alguém tem o direito de fazer isso, é você. Ela é a sua mãe, né? – tive cuidado em não soar grossa, pois me senti meio estressada – Quantos anos você tem?

– 19 anos – contou Bryan.

– E por que a sua mãe te expulsou do apartamento? – eu queria saber.

Um silêncio desconfortável se instalou entre nós dois até ele quebrar o gelo. O garoto passou a ponta da língua no lábio, sem me olhar, e ajeitou suas pernas.

– Minha mãe – relatou Bryan, uma mão na nuca e a outra perto do ferimento no nariz coberto por gazes – ela descobriu que eu não ando indo para a igreja como ela queria. Quando ela me viu com o meu antigo namorado, que também mora no prédio, ela surtou.

Amassei um lábio meu contra o outro. “Era caso de intolerância contra homossexualidade?”, eu me perguntei mentalmente, não querendo ser inadequada na frente dele. Eu até me senti culpada em ter achado que o tal antigo namorado, outro morador do prédio, fosse má influência na época em que eu vi a cena.

– Isso foi em setembro? – interroguei relutante para o rapaz.

– Como sabe que foi em setembro? – Bryan piscou seus olhos umas três vezes.

– Eu vi você passeando com outro garoto do prédio na área comum.

– Ah, sim, foi em setembro sim – eu o vi esboçar um sorrisinho bobo em sua face, antes de voltar com a expressão triste – Mamãe não é bem tolerante comigo querendo namorar com garotos, seja da minha idade ou não... – não quis falar isso com ele, mas senti que ele já namorou homens mais velhos – Ela sabe que já namorei com garotas e quer que eu me case. É o sonho dela, eu me casar com uma mulher e dar netos para ela. Fiquei um tempo querendo realizar esse sonho, mas aí eu me vi infeliz e falei para ela.

– E ela fez isso? – apontei para tanto o ferimento como também para as marcas em seu rosto que pareciam cicatrizes em riscos.

– Boa parte sim – confessou ele – Meu pai biológico morreu quando eu era novo. Era policial, morreu trabalhando com honra. Aí, dois anos depois, minha mãe arranjou um homem mais novo! Esse homem tinha a aparência de um cara bom com dinheiro, mas ele não era flor que se cheire. Ele tinha um fascínio muito louco por mim. Mamãe também mudou. Mamãe me culpava por ele não dar tanta atenção para ela e chegava a me maltratar. Tive que denunciar esse homem para que ele não abusasse mais de mim ou de mamãe. A polícia conseguiu o prender.

– Quando foi a prisão dele? – eu queria saber em um tom bem baixo.

– Foi em novembro – Bryan se encostou mais na cadeira – Graças aos céus ele não foi solto. Se ele fosse solto, eu estaria em apuros.

Silêncio. Pensei nas minhas próximas palavras. O rapaz estava atormentado mais do que eu imaginava, eu precisava ter alguma sensibilidade.

– Ainda bem que ele não está solto, ele parece ser um cara escroto pra caramba. Você poderia estar mesmo em perigo. E você foi jogado pra fora de casa por...? – continuei o interrogatório, com o objetivo de ver como eu ajudaria meu hóspede.

– Muitos motivos – Bryan parecia estar farto das perguntas – Eu cansei de contar.

Decidi não empurrar mais o assunto com ele. Mudei de tema. Falei das minhas condições para que ele estivesse em minha casa. Eu falei que pensava em dar um tempo limite para ele ficar no meu apartamento até terça-feira. Se ele não apresentasse algum trabalho até o prazo limite, eu poderia o convidar para ir para fora de casa. Falei isso para que ele não fosse dependente de mim, já que eu pretendia mantê-lo em casa mesmo se não obtivesse trabalho. Eu não sabia o dia de amanhã, ainda mais em uma pandemia.

Eu o deixei entrar em casa em uma sexta-feira. Na segunda-feira, ele foi sozinho ao Centro de Manaus buscar emprego e voltou com a oferta de um estabelecimento de ele poder ser atendente de padaria de manhã e tarde. O pagamento seria uma merreca, mas podia ajudar.

Eu me acostumei com a presença do garoto pela noite e pela madrugada, mas eu tinha que ver também a mãe dele.  Não consegui ficar sem falar algo pra ela e ver por eu mesma o outro lado. Chegando terça-feira, eu vi a mãe, dona Kathleen, voltar de algum lugar e ir abrindo a porta com trajes finos. Confesso que antes eu fiquei de quinze a quinze minutos vendo o corredor pelo olho mágico para poder presenciar a cena.

– Dona Kathleen? – eu abri a porta para poder falar com ela – Posso falar com a senhora, por favor?

– Oi, quem é você? – de forma elegante e educada, ela me perguntou.

– Sou Íris, Íris Salvador – eu contei – A sua vizinha.

Ela me encarou dos pés à cabeça.

– Disso estou sabendo, menina – declarou a mulher – O que você quer? Para você se manter neste prédio, dinheiro parece não ser.

– Seu filho, o Bryan, está no meu apartamento – respondi – Queria saber se a senhora pretende o acolher de volta a sua residência. Ele está muito triste.

– Pode o ter com você. Fica bem melhor para mim não ter a presença dele – ela se deu de ombros, uma sobrancelha arqueada – Quer dizer que o pestinha continua vivo?

Aquilo me deixou chocada, mas resolvi continuar a abordá-la:

– Por que não vai o acolher? – perguntei e senti preocupação em minha voz – Ele é seu filho, moça! Você não o viu só no corredor? Ele precisa de uma pessoa com quem possa confiar. Eu sou uma estranha, só uma vizinha... Eu não consigo avançar muito no coração dele e conseguir o curar.

– Querida – embora ela me chamasse assim, era visível que ela nem me queria bem ou mal – eu posso ter o gerado, mas não me sinto obrigada a ter Bryan em minha casa quando ele tem mais de 18 anos. Ele pode sobreviver na rua, se ele quiser – ela gesticulou com a mão para um lado, como jogasse uma mosca – Mas eu não sabia que ele se mantinha vivo, ainda mais com uma jovem e inocente moça como você.

– Você é mãe, poxa! – eu falei, por fim, sentindo-me bem emotiva – Deve ter alguma sensibilidade que possa ainda existir em você! Ele me contou coisas que vocês viveram juntos. Você era a melhor amiga dele.

Ela me mostrou um sorriso educado e superficial. Talvez ela nem sempre fosse assim, mas era difícil ver resquícios do que Bryan me contou do passado.

– Querida, eu não tenho tempo para bobagens – foi o que ela disse – Se você insistir demais em reaproximar Bryan de minha pessoa, terei que tomar providências de segurança! Mas eu a alerto de uma coisa. Tenha cuidado em deixar homens estranhos como ele dentro de seu apartamento, como você mora sozinha. Eles podem tomar a sua vida de diversas formas.

Eu admito que me assustei. Senti em minha pele que ela fosse capaz de tudo para permanecer como estava: sem o filho. Eu me perguntei se ela seria capaz de fazer mais algo contra Bryan. E abriu a porta para poder entrar, fechando bruscamente logo em seguida antes de trancar por dentro. Eu me senti bem impotente naquela hora.

Eu senti uma espécie de frieza em suas palavras e isso me chocou. Achei que Dona Kathleen tinha algum sentimento por Bryan. Mas parece que isso tudo sumiu da existência da Terra.

– E foi isso que aconteceu – falei naquela noite para o rapaz, quando ele me notou muito muda (não era comum, falo demais sozinha) na minha mesa de trabalho com as poesias – Bryan, acho tão errado o que ela falou... Afinal, vocês eram próximos...

– A alma de mamãe amargou – foi o que ele falou, vestido do uniforme laranja da padaria e sem me olhar direito – Acho que ela nem me reconhece mais como filho, Íris.

Bryan fez força com os músculos da face para não chorar ali mesmo. Eu percebi isso pela forma como ele inclinou a cabeça e mexia nos lábios. Uma troca de olhares se estendeu. Como ele tivesse vergonha de mostrar isso para mim, ele correu.

– Bryan – eu o observei querer se esconder pelo apartamento e fui atrás dele – Eu estarei com você, até você conseguir andar bem sozinho. Não sou sua mãe, mas posso ser sua amiga, tudo bem?

Na lavanderia, ele saiu de perto da máquina lavadora de roupas e me abraçou de repente. Fazia algum tempo que eu não abraçava alguém, então eu tremi um pouco de surpresa e pela falta de costume. Mas sabendo que talvez ele precisasse só de um ombro amigo para chorar, eu o deixei fazer cair suas lágrimas em mim.

Para nós dois, o contato pelo abraço fez nossos corações se acalmarem.

FIM DA HISTÓRIA CURTA.

 


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Filme | Conto

 

Criado e Escrito por:

Luciana Fernandes

 

Elenco:

Íris Salvador  (Michelle Olvera)

Thalita (Kayla Maisonet)

Bryan (Josh Richard)

Paulo Cézar (Griffin Gluck)

Dra. Kathleen (Alice Braga)

 

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